[Insiro adiante o texto que escrevi como apresentação de um livro editado pela associação Campo Aberto, na qualidade de presidente dela.]
A Campo Aberto -associação de defesa do ambiente, orgulha-se de editar este livro, fruto do amor, entusiasmo, pesquisa e saber dos seus autores, que paralelamente à sua preparação encontraram ainda forças para conceber, programar, organizar e executar, em curtos meses, um ciclo de visitas a jardins do Porto e de palestras e debates a respeito, promovido ao abrigo da mesma associação.
Ler À Sombra de Árvores com História… é partilhar do entusiasmo e do amor pelas árvores e pela arte dos jardins que transparece em cada uma das suas páginas e em cada linha aqui escrita por Paulo Ventura Araújo, Maria Pires de Carvalho e Manuela Delgado Leão Ramos. É descobrir ou redescobrir muita beleza que a cidade encerra por mor dos seus habitantes vegetais. E é também sofrer com os autores pelas destruições e barbáries de que esse mundo é tantas vezes vítima e partilhar o seu alerta contra a incultura e insensatez que alimentam tais destruições.
Mais ainda. É embarcar na aventura de tentar restabelecer a dignidade e a fecundidade da obra dos jardineiros criadores no livro evocados, portuenses ilustres entre os ilustres embora hoje ignorados e esquecidos, que no século XIX e início do século XX imprimiram à cidade características inconfundíveis.
E é ainda verificar como, nas últimas décadas, essas características foram frequentemente votadas ao esquecimento, sujeitas a atropelos, degradação e deturpações, não raro com sofisticados pretextos e elevados desígnios confessos, incluindo a recente voga das «requalificações», nome que vem sendo dado ultimamente a intervenções por vezes brutais, impensadas, ignorantes da história da cidade e do espírito dos seus lugares mais belos.
Vemos nestas páginas perpassar um escol de amantes das árvores e dos jardins – Alfredo Allen, José Marques Loureiro, Emílio David, José Duarte de Oliveira Júnior, José Gomes de Macedo, Aureliano da Silva e Sousa, Jerónimo Monteiro da Costa, Baptista de Lima Júnior, Américo Pires de Lima, João José Gomes, Alfredo Moreira da Silva, e outros –, que foi capaz, dentro das limitações da época, de formular uma visão rasgada para a cidade e de executar obras valiosas que deveriam merecer o carinho constante e o respeito da sua autenticidade e identidade por parte das gerações que lhes sucederam. Somos no entanto forçados a lamentar que o escol actual, que sobre estas matérias parece pontificar na cidade, dê por vezes mostras de possuir apenas uma meia instrução, que é talvez a mais perigosa forma de ignorância. Sob certos aspectos profissionais brilhantes e mesmo geniais, alguns dos membros desse escol demonstram por outro lado ocasionalmente uma arrepiante insensibilidade perante o mundo vivo não humano, em particular pelo mundo arbóreo e floral.
Outra coisa não traduz a actual moda da mineralização de jardins e espaços verdes, transformando-os em recintos talvez indicados para espectáculos de raios laser, mas que são um abastardamento e uma violação da marca nobre que neles deixaram os seus criadores. Há quem a isso chame «abrir os jardins à cidade» ou «requalificar», numa perversão de linguagem que faz lembrar a Novilíngua tão justamente denunciada no célebre livro1984 de Georges Orwell.
Mas certamente essa moda passará, como todas passam. E, à luz de uma nova consciência da importância da estrutura ecológica em meio urbano e do ideal de sustentabilidade, o amor pela arte dos jardins e pela arte floral, pelos espaços verdes e pelo mundo vivo, vegetal e animal, indispensáveis numa cidade para a preservação da sanidade física e da sanidade mental dos humanos que nela vivem, conhecerá em breve talvez um renascimento.
Numa cidade que albergou uma forte corrente de opinião veiculada em periódicos como o Jornal de Horticultura Prática, o Jornal Hortícola-Agrícola ou o Jardim Portuense, também neste livro evocados, quem sabe se não assistiremos num dia não muito longínquo a um novo fôlego cívico de idêntico quilate? Para tal, se vier a surgir, algo terá contribuído esta obra. Por mim, coloco-a ao lado de O Culto da Natureza, do grande agrónomo Joaquim Vieira Natividade, de Jardins Históricos do Porto, de Teresa Andresen e Teresa Portela Marques, e de alguns outros, como faróis luminosos a abrir a ampla avenida de uma nova era para a cidade, que volte decididamente costas aos estragos, insensibilidade e incultura que, em matéria urbanística, infelizmente caracteriza o mais recente período da história portuguesa.
José Carlos Costa Marques
8 de Maio de 2004