Por diversos motivos, desloco-me por vezes a Aveiro, vindo do Porto.
Há tempos, li uma reportagem no jornal Público sobre o bairro do Alboi. Julgava não conhecer o local mas pela descrição feita depreendi que já tinha andado por lá perto, em deambulações a pé, meu modo preferido de me deslocar quando possível.
Falava-se da revolta dos moradores desse local perante um projeto de «requalificação». Eis uma palavra que me suscita as maiores reticências, de tal modo tem sido utilizada, desde há 15 anos sobretudo [final dos anos 1990], para justificar por vezes intervenções desnecessárias e caras, abates indiscriminados de árvores, destruição de elementos urbanos valiosos e sua substituição por outros duvidosos, descaraterização de traços identitários da paisagem urbana.
Teriam os moradores razão na sua revolta? Se fosse algo do género, certamente eu estaria de acordo com eles. O enquadramento da intervenção que motivava o seu protesto num projeto designado de «sustentabilidade» foi outra coisa que me alertou. A verdadeira «sustentabilidade» (ambiental, ecológica, social, económica, financeira) não só merece todo o apoio como é uma necessidade imperiosa.
Mas tal como com a palavra «requalificação», apercebi-me desde há uns anos que o termo é hoje utilizado com frequência para designar o exato oposto. É a famosa «novilíngua» (Georges Orwell) em que os termos são aplicados de modo a, passando por verdadeiros, mentir e falsear, neste caso fazendo aparentemente passar por obra meritória o que seria a sua exata negação.
Fiquei curioso. Quando fosse a Aveiro, iria querer saber onde é o Alboi e tentar perceber as razões dos moradores. Deambulava vindo da Universidade e ladeava um quarteirão por onde já várias vezes antes tinha passado, quando, quase inadvertidamente, reparei que uma janela ostentava um humilde cartaz impresso a preto onde sobressaía a palavra «Alboi». Entrei no bairro (que afinal conhecia mas apenas na periferia) e logo a seguir no jardim interior, ponto central e o mais afetado pela intervenção prevista e a que se opõem muitos dos moradores.
Em Aveiro, como na generalidade do país, há alguns bairros de construção «moderna» confrangedora onde uma real requalificação faria algum ou mesmo muito sentido. Mas entrar naquele bairro, modesto, gracioso mesmo sem possuir nenhuma obra «grandiosa», naquele jardim simples, sem pretensões, mas correto, agradável, acolhedor, é entrar numa dimensão de paz, de tranquilidade, de silêncio!, de oásis (apesar de Aveiro ser uma cidade de dimensão e trepidação suportáveis), que transporta o morador ou o visitante ocasional para outra dimensão.
De imediato era percetível que um espaço daqueles, a manter e a preservar com eventuais melhoramentos de pormenor muito cuidadosos, deveria no mais ser intocável. Numa era de degradação contínua da qualidade de vida em meio urbano, aquela joia ali quedada quase por milagre deveria merecer o espanto e o respeito de quem quer que sinta verdadeiramente o que é a alma de uma cidade ou de um quarteirão urbano.
Interroguei-me: como é que autarcas, técnicos, projetistas, urbanistas, podem conceber uma intervenção como a prevista sem «temor e tremor», sem um pouco ao menos de vergonha? Por mais que haja quem não queira ver que existem tendências de época (como em todas as épocas, hoje um grau exponencialmente acima talvez) que representam uma ruína do pensamento, é preciso que haja quem afirme e aponte essa ruína (que amigos sugeriram ser também da «alma») para que os seus autores não possam dentro de duas décadas (quando se oficializam os arrependimentos…) dizer «que não sabiam». Felizmente, embora de maneira mais singela, é isso que exprime a revolta dos moradores do Alboi que colaram cartazes nas janelas das suas casas liliputianas mas singelamente atraentes a dizer, embora por outras palavras, que se recusam a ser triturados pela pretensa «modernidade», mesmo «sustentável». Quem estiver ainda a tempo e puder impedir um disparate desses, que não fique de braços cruzados.
In Diário de Aveiro, 24-01-2011
Nota em 27 de dezembro de 2023: afinal a hora do arrependimento ainda não chegou. As pseudo-requalificações, quase sempre verdadeiras destruições e razias embora a pretexto de «fazer obra», a gabarolice acéfala do pretenso culto da «modernidade», continuou a destruir ou desfigurar ou descaraterizar ou esconder numerosos jardins, praças, bairros, edifícios isolados, recantos. De pouco adiantaram trenos como o meu e numerosos outros. E não foi apenas em Aveiro, longe disso. De lés a rés de Portugal os exemplos são incontáveis. Nada parece deter o tsunami do mau gosto, da insensibilidade, da incultura (apoiada ou tolerada por muitos representantes oficiais da cultura), do desprezo pelo património. Nem o protesto de moradores. Perante o silêncio ou cumplicidade de muitos outros. Mas, sim, até esse tsunami há de passar e haverá quem nas gerações seguintes pasmará perante a impunidade que permitiu casos como estes.