Bem comum/bens comuns no movimento ecológico universal

Dez 28, 2023

Na longa história da humanidade é percetível uma tensão, variável conforme a época e os povos, entre a dimensão comunitária e a dimensão individual. Todos os povos, no entanto, se constituíram com base em estruturas fortemente comunitárias, desde a família à tribo, à estirpe, linhagem, à aldeia e, até recentemente, ao que podíamos chamar, no contexto europeu, a civilização paroquial com base nas comunidades territoriais locais.

Vemos que a essa linha de integração se vai opondo igualmente uma linha de emancipação do indivíduo face à comunidade, a qual irá culminar no individualismo liberal dos séculos XVIII e XIX e que teve na Revolução Francesa a sua maior tradução histórica.

Bem próprio da cidade ou sociedade

A criação da política como arte e metodologia de governar a cidade remonta à Grécia antiga, em cujo seio se elaboraram também as primeiras teorizações da pólis e da política, com Platão e Aristóteles. Nelas se considerava a existência de um bem próprio da cidade, um bem comum, diferente do simples somatório de bens individuais. Se a economia de então na pólis não é já a economia quase inteiramente comunitária de períodos anteriores (e da qual alguns traços se mantiveram praticamente até hoje, como acontecia ainda há pouco nas nossas aldeias comunitárias transmontanas, agora ameaçadas de uma extinção muito próxima devido ao apagamento demográfico arrastado pela emigração e, nota de dezembro de 2013, pela submersão de aldeias sacrificadas à construção de barragens), a economia da cidade grega reconheceu amplamente que o bem comum da pólis assenta em vários «bens comuns» mais específicos que lhe servem de fundamento.

Esta perspetiva da antiguidade será em parte retomada na Europa medieval, por exemplo em São Tomás de Aquino, que coloca mesmo o conceito de «bem comum» no centro do pensamento social cristão. De tal forma que, no século XIX, quando o florescer do liberalismo e do individualismo, que acompanharam o surto do capitalismo industrial, começaram a revelar temíveis efeitos secundários manifestados na miséria operária, na condição infantil e feminina, foi nesse conceito de «bem comum» que o pensamento cristão assentou o seu ressurgimento. Recusando ao mesmo tempo a perspetiva liberal da apropriação privada sem limites e a perspetiva coletiva que tinha surgido entretanto em contraponto, a chamada «doutrina social cristã» vinha relembrar que a finalidade da economia residia na felicidade de todos, e não apenas na de indivíduos ou na de uma classe.

Ditaduras, democracias e privatização dos bens comuns

No século XX, assistimos à subida em flecha da tensão «comum/individual». De um lado as ditaduras do Estado, de tipo estalinista ou fascista, do outro o extremar das tendências individualistas e de apropriação privada, e a vitória quase completa destas últimas na derradeira década do século. Mesmo bens que a economia liberal clássica chegou a considerar como bens gratuitos, e por tal comuns, como é o caso da água, estão hoje em vias de privatização acelerada, ao impor-se a sua instrumentalização para a produção de lucros e a remuneração de acionistas e perdendo-se de vista a sua função primacial de bem coletivo vital.

Na segunda metade do século findo dá-se ainda, sobretudo a partir do final dos anos 1960, uma tomada de consciência cada vez mais generalizada de como o tipo de civilização saído das sucessivas revoluções industriais estava a destruir ou a comprometer os próprios fundamentos da vida e, portanto, da própria existência humana: poluição química e nuclear, chuvas ácidas, desflorestação, contaminação do ar, dos solos e das águas, extinção de espécies animais e vegetais, passam a ser notícia frequente. Já não se trata agora de uma nação ou sociedade específica: é o bem comum da humanidade que se encontra ameaçado e que surge como problemático.

A defesa do ambiente redescobre a dimensão comum do destino humano

Mas se as correntes de opinião ambientalistas ou ecológicas redescobrem a dimensão comum do destino humano, e por vezes mesmo o caráter precioso daquilo a que certas tradições religiosas chamam «a criação», outras tendências sociais e económicas reforçam entretanto a tendência para reduzir todos os bens comuns a bens privados, cuja função prioritária consiste em gerar lucros para apropriação individual. De todos os elementos cósmicos da «criação», apenas o ar parece ainda escapar, embora já não totalmente, a essa redução a meras coisas económicas. O mais sintomático, porém, é a invasão por essa tendência do próprio domínio da vida e da propagação da vida. A «apropriação do vivo» revela a sua face genuína em fenómenos como as patentes sobre o vivo e nos alimentos geneticamente modificados, por exemplo. Estamos no limiar da completa destruição do conceito de «bem comum» e da supremacia quase total da apropriação privada sobre práticas milenares até há pouco ainda símbolos da própria dignidade da vida, como o ato de semear.

[Nota: revisto em 23 de dezembro de 2023 – texto de que não guardo datação nem registo de destino, se o teve. No final, previa exemplificar com casos como o «arroz dourado» e o de agricultores perseguidos judicialmente em litígios relacionados com os OGM – organismos geneticamente modificados, ou transgénicos na alimentação, o que nunca cheguei a fazer. Parece-me em geral que este artigo mantém  interesse no quadro de uma reflexão sobre a interface ambiental/ecológica/económica. Posso arriscar como datação o ano de 2028.]

Print Friendly, PDF & Email