Desenvolvimento sustentável: contributo para a sua análise crítica

Dez 28, 2023

Este texto foi proferido como intervenção oral num encontro do CNADS – Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável realizado no Porto em 23 de março de 2018 sob o título Conferência A Estratégia Portuguesa 2030 à luz dos objetivos de desenvolvimento sustentável. O título Desenvolvimento sustentável: contributo para a sua análise crítica, porém, foi colocado em 23 de dezembro de 2023 para inserção neste Chão. A minha intervenção (feita em circunstâncias a que aludo no n.º 1 do texto) foi recebida com silêncio e algum constrangimento, mas também com uma intervenção de rejeição combativa e sarcástica por alguém, cujo nome e entidade a que pertencia não recordo, que a fez em reação às alusões, que proferi verbalmente após a leitura do texto, relativas à apropriação e parcial deformação pelas instâncias oficiais, incluindo a ONU, dos objetivos da sustentabilidade.

1 Agradeço ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável a possibilidade de participar neste painel. E sobretudo a Nuno Sequeira (vice-presidente da Quercus e representante, no Conselho CNADS, da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente – CPADA), que indicou o meu nome. Adverti-o de que desconheço qual é o pensamento e a posição da Confederação sobre os temas aqui abrangidos e que, embora em consonância com as associações de defesa do ambiente na generalidade, não podia garantir qualquer representatividade na curta comunicação que vou fazer. Aliás, nem sequer a nível da minha própria associação, a Campo Aberto, a cuja direção presido. Para cúmulo, disse-lhe não ter qualquer ideia do que possa ser a Estratégia Portugal 2030, nem poderia ter, pois sou homem de paz e não estratego (na raiz etimológica grega) nem general (na raiz latina). Se estou aqui é porque ele me tranquilizou considerando suficiente que eu me identificasse com as preocupações gerais das Organizações Não Governamentais de Ambiente nestas matérias, ainda que em posições minoritárias e até idiossincráticas nesse âmbito. Resumindo, estou aqui na situação paradoxal de representar muita gente e de só me representar a mim próprio.

O lugar da sustentabilidade

2.

Os objetivos de desenvolvimento do milénio, num total de oito, colocavam em sétimo lugar «garantir a sustentabilidade ambiental». No contexto das Nações Unidas, podemos até compreender que condicionalismos diplomáticos e negociais tenham obrigado a empurrar este objetivo para o fim da lista. No nosso contexto, que não é esse, em que a exigência de verdade e lucidez deve predominar, tal objetivo não pode deixar de ser o primeiro — pois ele é a condição sine qua non para que os restantes se possam cumprir. Foi-nos indicado que, na abordagem desses objetivos, se destacariam aqui três aspetos: indústria e economia circular; conhecimento do mar (biologia marinha) e biodiversidade nos oceanos; e alterações climáticas. [Nota de 28-12-2023: entretanto parece que, sem me ter dado conta, a hierarquia dos objetivos teria mudado a favor do objetivo ambiental.]

Indústria e sustentabilidade

3.

Quanto à indústria. Não é novidade para ninguém que, embora antes disso tivesse havido disrupções ecológicas, só com a revolução industrial surgiu a questão ambiental no sentido moderno. Ela tem assim, grosso modo, pouco mais de 200 anos e foi-se agravando a ritmo exponencial até se tornar na crise global generalizada em que nos encontramos mergulhados. Isso explica por que razão, ao surgir com o ímpeto de todos os grandes movimentos históricos, o movimento ecológico universal, no vigor dos anos 1960-1970, tenha apresentado uma crítica vasta, acerada, profunda e realista da civilização industrial moderna, rasgando o manto diáfano da fantasia que era a sua imagem predominante para destapar a nudez crua da verdade, glosando o célebre dito queirosiano. E decerto essa crítica incidia de igual modo sobre a economia tal como se apresentava, com a curiosa particularidade de abranger tanto o modelo ocidental dito capitalista como o modelo soviético dito socialista. Recusava assim deixar-se aprisionar no falso dilema da época, propondo a necessidade e a urgência de uma alternativa, a não confundir com qualquer terceira via assética e inodora.

Sustentabilidade forte e sustentabilidade fraca

4.

O conceito de sustentabilidade emerge desse entorno crítico. Ao ser adotado pelas instâncias oficiais (Nações Unidas, Estados, governos), foi-se pouco a pouco esbotenando, perdendo o gume, tornando-se até certo ponto pau para toda a colher, sendo usado a torto e a direito nos mais díspares contextos, e até exibido por atores económicos, sociais e políticos para justificar intervenções que vão ao arrepio de qualquer real sustentabilidade. Apesar disso, o conceito continua a ter alguma utilidade, desde que utilizado na sua aceção «forte» e cuidadosamente destrinçado das suas contrafações. No sentido forte, a sustentabilidade (que remete para a perenidade dos recursos, dos ecossistemas, dos processos naturais) não é um elemento equilátero da célebre tríade (sustentabilidade ambiental, económica, social), mas, antes, o elemento ambiental é a raiz de onde promanam uma economia e uma sociedade a construir, que terão que ser muito diferentes da atual economia de rapina e pilhagem, economia de guerra e de morte, e sociedade espartilhada entre a mais lancinante miséria (vejam-se os dramas da fome e dos refugiados) e a mais frívola espetacularidade.

5.

Não quer isso dizer que não haja tendências económicas parcelares positivas, e empresas que procuram honestamente alguma forma de sustentabilidade coerente. No entanto, estamos ainda longe de uma indústria e de uma economia, tal como existem, que tenham deixado de ser a causa principal da crise ambiental global. Aqui há também que não confundir as intenções (ora piedosas ora hipócritas) e a realidade. No nosso próprio país, temos assistido a fantasiosas intervenções supostamente respeitadoras do ambiente e da natureza que de facto constituem enormes agressões e destruições, em grande parte irrecuperáveis. A cada um pode ocorrer facilmente um ou dois exemplos eloquentes, que me dispenso de especificar.

Circularidade e poluição de rios

6.

Na vertente positiva, a economia circular e o desperdício zero ou mesmo o lixo zero são excelentes coisas, e há meritórias experiências, tentativas e mesmo realizações nesse domínio. Mas estamos ainda longe de atingir alguns marcos fundamentais. O recente exemplo das descargas no rio Tejo (fenómeno aliás frequente um pouco por toda a nossa rede hidrográfica) mostra bem a vulnerabilidade reinante. E é até surpreendente que ainda se encarem com naturalidade, num domínio como a qualidade das águas no qual a circularidade deveria ser estrita, que se possam continuar a fazer dos rios destino de tais descargas, com o pressuposto — que a experiência mostra ser falso — segundo o qual o tratamento das águas residuais de per si as torna inócuas e prontas a voltar a servir como se entretanto nada lhes tivesse acontecido.

Oceanos e sustentabilidade

7.

A situação dos oceanos é um exemplo de como continuamos longe, em terra, de uma civilização sustentável. Quanto a Portugal, a moda e o alvoroço em torno da nossa extensa costa e águas territoriais, com aspetos inegavelmente positivos, esconde sobretudo a avidez de generalizar em ambiente marinho os métodos predatórios que predominam na atividade industrial terrestre. Fazer dos fundos marinhos um eldorado de exploração mineira é apenas o aspeto mais tenebroso dessas tendências. Claro que, nesse contexto, a biodiversidade marinha será a primeira vítima, a juntar à situação já existente nas águas superficiais e intermédias, e que colocou os recursos pesqueiros na vulnerável situação em que se encontram.

Alterações climáticas

8.

Quanto às alterações climáticas, pouco se pode dizer: o que a mão direita afirma, a esquerda nega. Afirmam-se objetivos como os do Acordo de Paris. Na realidade, continua-se a subsidiar pesadamente os combustíveis fósseis, a incentivar a exploração petrolífera, a admitir mesmo, e mesmo no nosso exíguo e maltratado território, a forma mais violenta de exploração de recursos, a fraturação hidráulica, e sua contraparte, a mineração a céu aberto com a devastação de grandes extensões do solo e do coberto vegetal. [Nota de dezembro de 2023: neste ponto haveria que distinguir, na medida em que o forte movimento de contestação à exploração de petróleo cerca da costa algarvia, ou às intenções de fracking, no que se refere ao nosso país, parece ter travado os intuitos iniciais agora chamados extrativistas, embora nada garanta que os poderes  públicos tenham desistido dessa exploração; quanto à mineração a céu aberto, começava então a perceber-se o que estava em preparação no que toca à vasta proliferação de projetos de extração de lítio e terras raras, proliferação que foi acompanhada em crescendo por um movimento de contestação e autodefesa das populações do interior, e cujo desenlace ainda se não revelou.]

9.

Cabe aqui, no âmbito da questão climática, recuperar brevemente o tema da indústria. Enquanto a base energética da indústria for aquela que hoje ainda impera, toda a sustentabilidade e circularidade serão largamente ilusórias. Não é possível desenvolvimento sustentável quando a sua base energética é insustentável — e devastadora.

Superação do statu quo

10.

Para terminar, evoco algumas possíveis pistas e sugestões para a superação do statu quo

– ir além da ideia de sustentabilidade, integrando-a no entanto no que ela possa ter de melhor; a sustentabilidade deve desembocar, a nível local e a nível mundial, na regeneração dos ecossistemas próximos e planetários; é esta a proposta do urbanista e ambientalista inglês Herbert Girardet, no seu livro Criar Cidades Regeneradoras (que sintomaticamente sucedeu ao precedente Criar Cidades Sustentáveis)

– colocar como farol da ação a Ética da Terra de Aldo Leopold, no seu célebre A Sand County Almanac, editado em português com o título Pensar Como Uma Montanha;

– revisitar o pensamento de Ivan Illich, uma estimulante crítica da sociedade industrial moderna, incluindo nos seus aspetos tecnológicos, económicos, educacionais, médicos e energéticos, de que o seu pequeno livro Para Uma História das Necessidades oferece uma síntese elucidativa;

– ousar pôr em causa o próprio conceito vulgar de desenvolvimento como o faz o biólogo e escritor luso-moçambicano Mia Couto no seu texto «Melhorar muito mal» (ver Ganhar a vida objetivo 7 garantir a sustentabilidade ambiental, editado em 2009 pelo IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento);

– meditar as cinco ideias e interrogações para uma mudança, do filósofo norueguês Arne Naess incluídas na mesma publicação do IPAD: 1 – o ecólogo de terreno adquire um respeito profundo, mesmo veneração, pelos diferentes processos e formas de vida; 2 – o  PIB – Produto Interno Bruto favorece os desejos não as necessidades, sem lugar para a distinção entre lixo e luxo; 3 – mais do que uma ciência, a economia torna-se uma espécie de religião do crescimento e do desenvolvimento; 4 – poderão os habitantes dos países pobres viver da mesma maneira que os países ricos? 5 – não será o excesso de uma população com elevados padrões de consumo que põe a Terra em perigo? Concluímos com uma síntese interpretativa do seu pensamento: só identificando-nos com a realidade total, com as comunidades humanas e não humanas, poderá a humanidade deixar de ser uma força de agressão à Terra, à Realidade – e, no mesmo lance, encontrar soluções aos problemas que a atormentam: alterações climáticas, poluição, pobreza, fome, guerra.

 

 

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