Incêndios estivais – o inferno cíclico

Dez 28, 2023

Reproduzo três escritos, um de 2013, um segundo de 2016, outro de 2017, onde se apontam as disformidades da floresta portuguesa atual. Foram ligeiramente revistos para figurar neste Chão. O tema é vasto e voltará a ser aqui abordado. Acresce que, apesar de algumas falsas aparências, os problemas fundamentais assinalados adiante continuam por resolver. Participei, em setembro de 2017, na criação da Aliança pela Floresta Autóctone, movimento informal que vinha sendo preparado desde o outono de 2016. Tenho desde então participado nas suas atividades, documentadas em https://florestautoctone.webnode.pt

Sugiro uma visita a esse website e, caso não o tenha subscrito ainda, sugiro também a subscrição do Apelo para uma Aliança pela Floresta Autóctone que lá se encontra.

Texto de 29 de agosto de 2013

Este escrito constitui uma adaptação de uma nota emitida no contexto de uma controvérsia no âmbito de um fórum de debate, e evidentemente não substitui a controvérsia ela própria no seu conjunto, só ela podendo dar-lhe a dimensão que lhe atribuí. Mesmo assim, poderá ser útil para alguns. No final, tento responder a algumas perguntas que me foram postas sobre este texto.

O ciclo infernal dos fogos estivais

O fenómeno dos fogos estivais contínuos desde há décadas em Portugal, pela sua recorrência e dimensão, esta muitas vezes considerável e, com alguma frequência, enorme, julgo que tem pouco a ver com determinadas especificidades do comportamento e apuramento de plantas perante o fogo, como é o caso da esteva, ou do sobreiro, que criou à custa do fogo uma proteção com a sua casca ou cortiça. Esses fenómenos passaram-se em épocas longínquas e pouco têm agora a ver com a nossa presente realidade.

Há quem aponte o papel do fogo na evolução das espécies e lhe veja «vantagens» para a biodiversidade. Mas isso seria a meu ver transpor realidades de outros contextos geográficos e, sobretudo, de outros arcos cronológicos (de uma escala de milhões de anos para uma escala de algumas dezenas) que deformam a perspetiva com que teríamos que ver a nossa realidade. Se de facto os fogos são benéficos para a «biodiversidade», então deveriam ser planeados e executados sob orientação de ecobiólogos e não resultarem de outros fatores, aleatórios e incontroláveis. Ora os nossos fogos, instalados há muito no prazo longo (longo à escala de uma vida humana), são precisamente do último tipo. O que podem ter de desejável, ou de tolerável, ou de passa-culpas, como faria supor a insistência de alguns em negarem o caráter de desgraça que têm tido entre nós, escapa-me completamente.

Paradoxo português

Esses fogos são basicamente decorrentes de um paradoxo nosso: o abandono humano de extensas regiões anteriormente ocupadas com densidade relativamente grande, sua substituição por extensas manchas de monossilviculturas, essencialmente pinheiro e eucalipto, por vezes entremeadas de grandes extensões de giestais e outros matos, e apesar disso com intensa utilização humana (relativamente ao grau de abandono), permanente ou esporádica, quanto mais não seja de simples atravessamento, predominantemente motorizado, com um acréscimo significativo precisamente no verão.

Lembro-me que em certas discussões sobre estes assunto, há uma meia dúzia de anos, um português residente na Dinamarca dizia algo que vou resumir assim: em países «civilizados» como a Dinamarca (esqueceu-se de considerar o clima como fator de fogo, mas enfim…) isso não acontece; nos campos há muito pouca gente, está toda a gente nas cidades, e está muito bem assim, é gente civilizada; aqui em Portugal é que ainda anda muita gente por aí pelas zonas extra-urbanas, e daí resultam os fogos; e implicitamente deduzia-se que, para ele, erradicando as pessoas ou acabando de as concentrar em Lisboa e faixa litoral, acabavam-se os fogos (pelo menos, os fogos perigosos para as pessoas…).

Por caricatural que seja esta posição, há alguma verdade nela. Só que, o que ele via como resultado de sermos labregos e atrasados, vejo eu um como um aspeto positivo: apesar de todo o abandono humano, e apesar de regiões fortemente deprimidas demograficamente, e apesar da necessidade de repor ativamente algum reequilíbrio nesse domínio, ainda há alguma presença humana no interior do País, e ainda bem, embora, paradoxalmente, a suficiente para que o fenómeno dos grandes fogos em Portugal tenha sobretudo a ver — (quer se considerem as causas criminais – por sua vez subdivididas nas dos maluquinhos, dos alcoólicos e dos vingativos, e incluindo as dos interesses económicos setoriais, reais ou supostos –, quer as de negligência, quer as simplesmente fortuitas) — com uma dimensão demográfica e económica, e não com uma dimensão «ecológica» no sentido dos benefícios-malefícios de fogos «naturais» na estratégia milenar de sobrevivência de ecossistemas ou de plantas específicas (o que não quer dizer que os atuais fogos não tenham consequências «ecológicas», antes pelo contrário).

As plantas já cá estavam

Essas plantas já cá estavam quando em todo o território português só haveria uns milhares de humanos primitivos pré-neolíticos esparsos, situação que nada tem a ver com a nossa situação atual. Os índios americanos sabiam fazer isso, ao que parece, e bem (usar o fogo em seu benefício e em benefício das pradarias e da fauna). Mas num contexto que não se pode e não se deve transpor para o nosso interior, numa época totalmente diferente e com uma ocupação territorial totalmente diferente. E o que se faz nos grandes parques americanos nesse domínio também não nos servirá de grande inspiração, tal o abismo na diferença de situações. E os grandes fogos, como há anos o da Califórnia que segundo constou fez G. Bush dizer que a solução era arrancar as árvores todas, foi tudo menos desejado, útil, controlado ou qualquer coisa do género, e esse sim pode em parte comparar-se à nossa situação: um desastre indesejável.

A resolução duradoura dos estragos reais dos fogos como os conhecemos agora, é possível. Negar os estragos é uma cómoda maneira de não precisar de solução, mas, como alguns mais, creio que é necessária solução, e que ela é possível, desejável e praticável, mas apenas por intermédio de vontade socialmente expressa de modo claro que seja capaz de pôr em movimento os meios necessários para a execução dela:

Presença humana causa e vítima principal

1 Tal como a presença humana atual é a causa principal (e a vítima principal, e com uma lista de vítimas mortais que se estende ano a ano) dos fogos, só o reforço dessa presença humana (quer em número, no sentido de um reequilíbrio, mas não de uma reprodução da situação anterior ao «abandono», quer em preparação cultural, ecológica e cívica) poderá quebrar o ciclo aparentemente fatal dos fogos estivais constantes de grande dimensão.

Plano pluridimensional

2 Tal reequilíbrio, embora possa manifestar-se já de forma espontânea como tendência, só poderá ter eficácia mediante um plano nacional de emergência que não pode ser um plano específico para fogos, mas um plano pluridimensional, económico, agrícola, silvoflorestal, de conservação da natureza, demográfico, com recurso a incentivos e a discriminação positiva, o qual é simultaneamente um elemento importante, senão o principal, de resposta à chamada «crise».

Abandono do território e recuperação ecológica

3 As vantagens ecológicas parciais de algum abandono (embora suscetíveis de análise crítica e ponderação), com a aparente recuperação ecológica não voluntária de algumas espécies, estão sujeitas a fatores aleatórios e são por isso frágeis e reversíveis perante uma corrida desordenada a recursos em terra se a crise (ou a guerra) a pressionarem. Mas no plano atrás evocado, e que já o menciona no ponto 2, essas vantagens deveriam ser consolidadas através de um reforço da rede de espaços protegidos e dedicados à conservação e, além disso, através da prática de uma agricultura, e de economia do setor primário em geral, de que fariam parte integrante novos espaços de recuperação e conservação associados a esse tipo de ocupação do território (como aliás já se aponta, ainda que com limitações e defeitos na conceção, e resistências e arrastar de pés na aplicação, na política agrícola europeia recente).

Claro que não existe ainda a vontade social a que aludi, em expressão significativa. Criá-la é o primeiro passo. Não estamos perto disso, mas já estivemos mais longe. Como em tudo o mais neste tipo de coisas, é assunto que funciona como separador de águas. Cada um saberá, chegado o momento, em que lado da alternativa se coloca. Se aposta no statu quo da resignação aos fogos e até do seu enaltecimento (como se, quanto ao fogo controlado ou limitado, ele fosse mais do que uma técnica, sem dúvida positiva se bem aplicada, de evitar os grandes fogos incontroláveis) e da sua justificação «ecológica»; ou se aposta na criação de uma alternativa social e económica que altere profundamente a atual forma como a população em Portugal se relaciona com o território, o utiliza e o estima.

Perguntam-me:

A monossilvicultura arde mais? há provas?

Não me refiro senão à forma como o pinheiro e o eucalipto foram em Portugal objeto de plantações em manchas de grande extensão, num modelo a que é legítimo chamar de monocultura. A gravidade e recorrência dos fogos em Portugal desde, principalmente, meados dos anos 1960, com tendência a um agravamento constante, tem a ver com o tipo de espécie – tanto o pinheiro como o eucalipto são altamente inflamáveis devido aos óleos e resinas que contêm –, o que seria inofensivo em árvores isoladas ou em pequenos maciços ou mesmo em matas algo extensas mas interrompidas por zonas de agricultura de forma a impedir a formação contínua de extensas manchas, como tem também a ver obviamente com o nosso clima, e ainda, suplementarmente, com o aumento das temperaturas anuais médias (alterações climáticas como se fazem sentir em Portugal), e, ainda, com o tipo e grau de presença ou abandono humano, ligado à evolução da nossa agricultura (e sociedade em geral), num arco histórico que podemos situar a partir sobretudo dos anos 1950. Não é nenhum desses fenómenos isoladamente que está em causa, mas sim os quatro e as suas interações e efeitos multiplicadores: espécies arbóreas inflamáveis, extensas manchas contínuas, clima e alterações climáticas, e ocupação humana do território e atividades correlativas.

O argumento do clima não é decisivo? é boa retórica começar por esta comparação?

Bem, o caso da Dinamarca calhou assim, não houve uma intenção de «começar» por aí. Mas aí nem é a questão do clima que refiro, a não ser para relativizar a utilidade do exemplo da Dinamarca. É evidente que na Dinamarca várias causas fazem com que não exista o fenómeno do ciclo recorrente de incêndios estivais como cá, sendo uma delas claramente o clima mais frio, que a pessoa em causa esqueceu. Mas também eventualmente o facto de o território não urbano estar realmente pouco povoado, sem pinheiros, eucaliptos e espécies semelhantes, obviamente, e extensamente dedicado à agricultura de planície. A comparação é inútil. Só falei nisso para acentuar que a presença de pessoas no interior de Portugal é um facto positivo. E embora em grande parte sejam elas (um pequeno número delas, locais ou visitantes) que provocam os incêndios (que noutro ordenamento territorial nunca atingiriam a dimensão que têm), a solução não está em tirar de lá ainda mais pessoas, mas sim em levar mais gente para lá (voluntários, obviamente) num quadro económico de revitalização desse interior, e pessoas preparadas para exercer atividades dissuasoras dos incêndios e não suas propagadoras.

Atribuir à humanidade a causa dos fogos não é um truísmo contraproducente?

O fogo já existia antes do ser humano existir… diria La Palisse. Mas o ser humano passou a utilizá-lo para os seus fins próprios. No nosso caso, a frequência, intensidade e efeitos dos fogos estivais são produto de uma evolução histórica: uma sociedade que passou de uma agricultura pobre, muitas vezes de subsistência apenas, para uma sociedade urbanizada e concentrada no litoral, no cruzamento de fenómenos como a política florestal dos anos 1940-50 (veja-se o clássico de Aquilino Ribeiro Quando os Lobos Uivam) e a emigração em massa dos anos 1960, seguido após 1974 e sobretudo 1986 do quase completo abandono do setor primário (a não ser pelas celuloses que pelo contrário apostaram nele, o que, aliás, redundou  numa nova causa indireta da situação ao exponenciar o recurso a extensas plantações de eucalipto – e isso mesmo se, e é um facto, os eucaliptais sob alçada das celuloses estão menos sujeitos ao fogo porque tudo o resto está em abandono ou semiabandono) e do desinteresse total das populações urbanas e das elites, incluindo governantes, pelo que se passa fora de Lisboa e do litoral, pesem as aparências emocionais em contrário dos telejornais de verão.

Ou seja: a causa do nosso problema dos fogos cíclicos estivais que duram há décadas sucessivas (esse e apenas esse, não de qualquer outro fogo) é uma determinada situação social, económica e histórica. Como nunca, até hoje, nesse período agora já de mais de meio século, a sociedade portuguesa se empenhou seriamente em alterar o embrechado que constitui essa situação, os fogos repetem-se. E continuarão a repetir-se, reproduzindo sempre o mesmo cenário, enquanto a apatia e desinteresse da sociedade (e não apenas dos governos) se mantiver.  [Agradeço a Miguel Dantas da Gama ter-me chamado a atenção para o facto de que, atualmente, os fogos não são apenas «estivais», antes tendem a deflagrar em qualquer época do ano, mesmo no inverno, em menor número, é certo, mas em número não desprezível.]

Texto de 16 de setembro de 2016 precedido de uma nota de 24 de agosto de 2017

Mosaico paisagístico

O que segue abaixo, que vai precedido desta nota de atualização, data de 16 de setembro de 2016. Mal sabia então quanto era premonitório.

Há aí uma referência a Pombal porque esse município em 2016 afirmou a vontade de intervir decididamente na «floresta» (leia-se: monocultura intensiva de pinheiro e/ou eucalipto) e invocou a imagem do «mosaico», tão estimada pela escola dos seguidores e discípulos de Caldeira Cabral, sempre até há pouco (e ainda agora) recebida pela sociedade portuguesa com orelhas moucas.

No que se refere às «zonas tampão» a que alude o Professor Cardoso Pereira, restaria saber que outras atividades podem ser essas, urgentíssimas. Numa conversa de grupo recente via email, disse eu que não era possível cobrir de cimento ou de parques industriais esses «cortes» na massa cerrada de plantações de árvores pirófilas que hoje temos, e que a construção de «aldeias» (urbanizações, na realidade) turísticas destinadas a um público com poder de compra elevado não pode desempenhar esse papel. Resta a agricultura ou atividades correlatas, incluindo a preparação de compostos fertilizantes com base em matéria orgânica «excedentária» que, dada a reconhecida carência dos solos portugueses nesse elemento, seria sempre de grande utilidade e poderia ter um papel económico nada desprezível.

É claro que isso pressupõe uma política agrícola e rural que não temos e uma reabilitação da produção para autoconsumo (não numa agricultura de subsistência à antiga, mas num complexo polivalente de multiemprego e autoemprego complementar). O problema «florestal» provavelmente só pode ter uma solução agrícola, apesar da aparente contradição.

Quanto às «iniciativas locais de defesa de território» desconhecia nessa ocasião que existe já legislação que prevê a autodefesa das populações. Mas, ao que compreendi, é algo que caiu no esquecimento ou não passou da paralisia burocrática. De facto, esse tipo de intervenção só pode resultar da vontade e iniciativa dos cidadãos, embora possa ser positivo que exista um quadro jurídico que as possibilite e favoreça, sem que lhes seja tolhida a necessária espontaneidade, pois só livremente e autonomamente poderão preencher o seu papel.

[Nota de 23 de dezembro de 2023: no que se refere ao «mosaico» (termo que por vezes é utilizado superficialmente) tem hoje uma expressão coerente e promissora no Projeto Scapefire, precisamente em boa parte animado por uma arquiteta paisagista da «escola» de Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Teles, Manuela Raposa Magalhães). Quanto às iniciativas de defesa local, parece terem tido alguma implementação, entre outras pelo Programa Aldeia Segura que, no entanto, certos especialistas da matéria criticam por o considerarem mais «show-off» que outra coisa.]

24 de agosto de 2017

Fogos nas matas: o modelo «mosaico paisagístico» faz progressos

Este ano de 2016 parece ter sido o quarto pior ano das últimas quatro décadas em incêndios nas matas!

Uma notícia do Público de 14 de setembro contém esse dado: «Num país de floresta mal gerida, só 23 alunos escolheram engenharia florestal». Na verdade, a notícia, assinada pelo jornalista Abel Coentrão, relata o primeiro de uma série de debates sobre «A Floresta Portuguesa em Causa» na UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, no dia 13 de setembro.

Cita-se o especialista em Ecologia e Gestão do Fogo, José Miguel Cardoso Pereira, que sugere que o país abdique de 10 a 15 por cento da área ocupada com floresta mal gerida criando zonas tampão que, com outras atividades, possam quebrar as manchas de ocupação contínua. «Não vamos lá com faixas de contenção de 100 ou 150 metros».

Além de outras coisas de interesse, vem esta, que corrobora Cardoso Pereira: «O docente da UTAD Paulo Fernandes avisara, logo na primeira intervenção do dia, que o que mudou no país não foi a estrutura fundiária, mas a atividade económica desenvolvida nas florestas portuguesas e no interior, em geral, e que, em parte, garantia um mosaico paisagístico que travava, na década de 1950, os grandes incêndios.» [Nota de 23 de dezembro de 2023: o mesmo perito não parece atualmente dar crédito à ideia de que o mosaico paisagístico possa ser um elemento chave da solução, ao contrário daqueles que lançaram o Projeto Scapefire.]

Além da câmara de Pombal, outras vêm aparecendo a usar a mesma terminologia. Começa a compreender-se que o fogo foi longe demais porque o abandono foi longe demais, e a reclamar-se gente e atividade no interior. Há anos esteve por cá uma equipa de peritos noruegueses que disse a mesma coisa que a escola paisagística portuguesa dizia desde sempre, o célebre «mosaico», mas nem por ser profeta de outra terra alguém parece ter-lhe ligado importância. Ou então a semente ficou a germinar algures.

Há que aproveitar o desastre do verão de 2016 para não largar esta pista e fazê-la atuante nos cidadãos. Convidem-se os que não se resignam ao desastre permanente a constituir nas suas terras «iniciativas locais de defesa do território».

16 de setembro de 2016

Nota de 24 de agosto de 2017

Reproduzi mais acima um escrito de há quatro anos [2013]. Infelizmente a tragédia real deste verão de 2017 viria dar-me razão em muitos destes pontos, que eu dispensaria bem se esses quatro anos tivessem sido passados em ações que realmente a pudessem ter evitado, e que defendi na ocasião.

Algumas coisas estão influenciadas pelo contexto da discussão em que o escrito se situa. O que digo sobre o sobreiro obviamente não invalida que as caraterísticas de proteção perante o fogo que esta árvore terá desenvolvido na sua história evolutiva não sejam importantes ainda hoje. Certamente são, e por isso o sobreiro é uma boa alternativa ao atual absolutismo do dueto pinheiro-eucalipto. O que sobretudo quis frisar então é que o regime de fogos que apelido de inferno cíclico (expressão que poderá ter parecido exagerada a alguns mas que hoje, para desgraça nossa, se justificou inteiramente aos olhos de todos) é uma «novidade histórica» das décadas recentes e tem que ser compreendido nesse contexto histórico. Quanto à geografia, idem: não é no matorral mediterrâneo nem no Oeste ou nas pradarias americanas que temos que encontrar equivalentes: gostemos ou não, tudo o evidencia, o que se passa em Portugal nesse domínio não se passa em mais lugar nenhum do mundo. [Nota de dezembro de 2023: os fogos florestais recorrentes na Califórnia e, sobretudo, os mais recentes em lugares antes impensáveis como a Suécia ou a Sibéria, estão fortemente relacionados com o agravamento do aquecimento global, fator que em Portugal também está obviamente presente mas onde atuam numerosos outros fatores; o caráter único do caso português continua a ser uma realidade].

No fundo, nesse escrito reagi contra a ideia de «normalidade» do regime de fogos que temos, que alguns defendiam então (e se calhar ainda defendem).

E defendi o inconformismo em vez da resignação. Por essa altura, a associação Campo Aberto, a que pertenço, em cooperação com a Quinta do Lobo Branco (Penafiel), estava já a preparar um pequeno encontro sobre o tema que viria a realizar-se em 22 de outubro de 2016 na referida quinta, e que teve e ainda tem alguns seguimentos (sobretudo, a Aliança pela Floresta Autóctone).

Restaria dizer que, em reflexão conjunta com algumas pessoas que partilham estas preocupações, e sobretudo com o naturalista e grande conhecedor do Parque Nacional da Peneda-Gerês (sobre o qual publicou já uma bibliografia notável), Miguel Dantas da Gama, matizaria hoje muito do pouco que escrevi no escrito acima sobre «fogos controlados». O único que me parece fazer sentido é o contrafogo, quando já há um fogo declarado e em descontrolo. Quanto ao fogo controlado como panaceia para nos livramos de «combustível» (uma metáfora; o que há são plantas arbustivas e herbáceas, não «combustível», embora sejam… combustíveis), parece-me uma «solução» preguiçosa, que foge a enfrentar o verdadeiro problema, que é o de identificar a razão de ser de uma vegetação espontânea vir a constituir um perigo e uma catástrofe. Para não falar das emissões de gases com efeito de estufa que assim se provocam, o que, no contexto das alterações climáticas, seria de evitar . Para não falar da possibilidade do que se julga poder controlar… se descontrole, dando origem a fogos incontrolados. Para não falar na erosão, na perda de biodiversidade, na fauna associada, e outras coisas mais.

 

 

 

 

 

Print Friendly, PDF & Email