Incêndios estivais – o inferno cíclico

Reproduzo três escritos, um de 2013, um segundo de 2016, outro de 2017, onde se apontam as disformidades da floresta portuguesa atual. Foram ligeiramente revistos para figurar neste Chão. O tema é vasto e voltará a ser aqui abordado. Acresce que, apesar de algumas falsas aparências, os problemas fundamentais assinalados adiante continuam por resolver. Participei, em setembro de 2017, na criação da Aliança pela Floresta Autóctone, movimento informal que vinha sendo preparado desde o outono de 2016. Tenho desde então participado nas suas atividades, documentadas em https://florestautoctone.webnode.pt

Sugiro uma visita a esse website e, caso não o tenha subscrito ainda, sugiro também a subscrição do Apelo para uma Aliança pela Floresta Autóctone que lá se encontra.

Texto de 29 de agosto de 2013

Este escrito constitui uma adaptação de uma nota emitida no contexto de uma controvérsia no âmbito de um fórum de debate, e evidentemente não substitui a controvérsia ela própria no seu conjunto, só ela podendo dar-lhe a dimensão que lhe atribuí. Mesmo assim, poderá ser útil para alguns. No final, tento responder a algumas perguntas que me foram postas sobre este texto.

O ciclo infernal dos fogos estivais

O fenómeno dos fogos estivais contínuos desde há décadas em Portugal, pela sua recorrência e dimensão, esta muitas vezes considerável e, com alguma frequência, enorme, julgo que tem pouco a ver com determinadas especificidades do comportamento e apuramento de plantas perante o fogo, como é o caso da esteva, ou do sobreiro, que criou à custa do fogo uma proteção com a sua casca ou cortiça. Esses fenómenos passaram-se em épocas longínquas e pouco têm agora a ver com a nossa presente realidade.

Há quem aponte o papel do fogo na evolução das espécies e lhe veja «vantagens» para a biodiversidade. Mas isso seria a meu ver transpor realidades de outros contextos geográficos e, sobretudo, de outros arcos cronológicos (de uma escala de milhões de anos para uma escala de algumas dezenas) que deformam a perspetiva com que teríamos que ver a nossa realidade. Se de facto os fogos são benéficos para a «biodiversidade», então deveriam ser planeados e executados sob orientação de ecobiólogos e não resultarem de outros fatores, aleatórios e incontroláveis. Ora os nossos fogos, instalados há muito no prazo longo (longo à escala de uma vida humana), são precisamente do último tipo. O que podem ter de desejável, ou de tolerável, ou de passa-culpas, como faria supor a insistência de alguns em negarem o caráter de desgraça que têm tido entre nós, escapa-me completamente.

Paradoxo português

Esses fogos são basicamente decorrentes de um paradoxo nosso: o abandono humano de extensas regiões anteriormente ocupadas com densidade relativamente grande, sua substituição por extensas manchas de monossilviculturas, essencialmente pinheiro e eucalipto, por vezes entremeadas de grandes extensões de giestais e outros matos, e apesar disso com intensa utilização humana (relativamente ao grau de abandono), permanente ou esporádica, quanto mais não seja de simples atravessamento, predominantemente motorizado, com um acréscimo significativo precisamente no verão.

Lembro-me que em certas discussões sobre estes assunto, há uma meia dúzia de anos, um português residente na Dinamarca dizia algo que vou resumir assim: em países «civilizados» como a Dinamarca (esqueceu-se de considerar o clima como fator de fogo, mas enfim…) isso não acontece; nos campos há muito pouca gente, está toda a gente nas cidades, e está muito bem assim, é gente civilizada; aqui em Portugal é que ainda anda muita gente por aí pelas zonas extra-urbanas, e daí resultam os fogos; e implicitamente deduzia-se que, para ele, erradicando as pessoas ou acabando de as concentrar em Lisboa e faixa litoral, acabavam-se os fogos (pelo menos, os fogos perigosos para as pessoas…).

Por caricatural que seja esta posição, há alguma verdade nela. Só que, o que ele via como resultado de sermos labregos e atrasados, vejo eu um como um aspeto positivo: apesar de todo o abandono humano, e apesar de regiões fortemente deprimidas demograficamente, e apesar da necessidade de repor ativamente algum reequilíbrio nesse domínio, ainda há alguma presença humana no interior do País, e ainda bem, embora, paradoxalmente, a suficiente para que o fenómeno dos grandes fogos em Portugal tenha sobretudo a ver — (quer se considerem as causas criminais – por sua vez subdivididas nas dos maluquinhos, dos alcoólicos e dos vingativos, e incluindo as dos interesses económicos setoriais, reais ou supostos –, quer as de negligência, quer as simplesmente fortuitas) — com uma dimensão demográfica e económica, e não com uma dimensão «ecológica» no sentido dos benefícios-malefícios de fogos «naturais» na estratégia milenar de sobrevivência de ecossistemas ou de plantas específicas (o que não quer dizer que os atuais fogos não tenham consequências «ecológicas», antes pelo contrário).

As plantas já cá estavam

Essas plantas já cá estavam quando em todo o território português só haveria uns milhares de humanos primitivos pré-neolíticos esparsos, situação que nada tem a ver com a nossa situação atual. Os índios americanos sabiam fazer isso, ao que parece, e bem (usar o fogo em seu benefício e em benefício das pradarias e da fauna). Mas num contexto que não se pode e não se deve transpor para o nosso interior, numa época totalmente diferente e com uma ocupação territorial totalmente diferente. E o que se faz nos grandes parques americanos nesse domínio também não nos servirá de grande inspiração, tal o abismo na diferença de situações. E os grandes fogos, como há anos o da Califórnia que segundo constou fez G. Bush dizer que a solução era arrancar as árvores todas, foi tudo menos desejado, útil, controlado ou qualquer coisa do género, e esse sim pode em parte comparar-se à nossa situação: um desastre indesejável.

A resolução duradoura dos estragos reais dos fogos como os conhecemos agora, é possível. Negar os estragos é uma cómoda maneira de não precisar de solução, mas, como alguns mais, creio que é necessária solução, e que ela é possível, desejável e praticável, mas apenas por intermédio de vontade socialmente expressa de modo claro que seja capaz de pôr em movimento os meios necessários para a execução dela:

Presença humana causa e vítima principal

1 Tal como a presença humana atual é a causa principal (e a vítima principal, e com uma lista de vítimas mortais que se estende ano a ano) dos fogos, só o reforço dessa presença humana (quer em número, no sentido de um reequilíbrio, mas não de uma reprodução da situação anterior ao «abandono», quer em preparação cultural, ecológica e cívica) poderá quebrar o ciclo aparentemente fatal dos fogos estivais constantes de grande dimensão.

Plano pluridimensional

2 Tal reequilíbrio, embora possa manifestar-se já de forma espontânea como tendência, só poderá ter eficácia mediante um plano nacional de emergência que não pode ser um plano específico para fogos, mas um plano pluridimensional, económico, agrícola, silvoflorestal, de conservação da natureza, demográfico, com recurso a incentivos e a discriminação positiva, o qual é simultaneamente um elemento importante, senão o principal, de resposta à chamada «crise».

Abandono do território e recuperação ecológica

3 As vantagens ecológicas parciais de algum abandono (embora suscetíveis de análise crítica e ponderação), com a aparente recuperação ecológica não voluntária de algumas espécies, estão sujeitas a fatores aleatórios e são por isso frágeis e reversíveis perante uma corrida desordenada a recursos em terra se a crise (ou a guerra) a pressionarem. Mas no plano atrás evocado, e que já o menciona no ponto 2, essas vantagens deveriam ser consolidadas através de um reforço da rede de espaços protegidos e dedicados à conservação e, além disso, através da prática de uma agricultura, e de economia do setor primário em geral, de que fariam parte integrante novos espaços de recuperação e conservação associados a esse tipo de ocupação do território (como aliás já se aponta, ainda que com limitações e defeitos na conceção, e resistências e arrastar de pés na aplicação, na política agrícola europeia recente).

Claro que não existe ainda a vontade social a que aludi, em expressão significativa. Criá-la é o primeiro passo. Não estamos perto disso, mas já estivemos mais longe. Como em tudo o mais neste tipo de coisas, é assunto que funciona como separador de águas. Cada um saberá, chegado o momento, em que lado da alternativa se coloca. Se aposta no statu quo da resignação aos fogos e até do seu enaltecimento (como se, quanto ao fogo controlado ou limitado, ele fosse mais do que uma técnica, sem dúvida positiva se bem aplicada, de evitar os grandes fogos incontroláveis) e da sua justificação «ecológica»; ou se aposta na criação de uma alternativa social e económica que altere profundamente a atual forma como a população em Portugal se relaciona com o território, o utiliza e o estima.

Perguntam-me:

A monossilvicultura arde mais? há provas?

Não me refiro senão à forma como o pinheiro e o eucalipto foram em Portugal objeto de plantações em manchas de grande extensão, num modelo a que é legítimo chamar de monocultura. A gravidade e recorrência dos fogos em Portugal desde, principalmente, meados dos anos 1960, com tendência a um agravamento constante, tem a ver com o tipo de espécie – tanto o pinheiro como o eucalipto são altamente inflamáveis devido aos óleos e resinas que contêm –, o que seria inofensivo em árvores isoladas ou em pequenos maciços ou mesmo em matas algo extensas mas interrompidas por zonas de agricultura de forma a impedir a formação contínua de extensas manchas, como tem também a ver obviamente com o nosso clima, e ainda, suplementarmente, com o aumento das temperaturas anuais médias (alterações climáticas como se fazem sentir em Portugal), e, ainda, com o tipo e grau de presença ou abandono humano, ligado à evolução da nossa agricultura (e sociedade em geral), num arco histórico que podemos situar a partir sobretudo dos anos 1950. Não é nenhum desses fenómenos isoladamente que está em causa, mas sim os quatro e as suas interações e efeitos multiplicadores: espécies arbóreas inflamáveis, extensas manchas contínuas, clima e alterações climáticas, e ocupação humana do território e atividades correlativas.

O argumento do clima não é decisivo? é boa retórica começar por esta comparação?

Bem, o caso da Dinamarca calhou assim, não houve uma intenção de «começar» por aí. Mas aí nem é a questão do clima que refiro, a não ser para relativizar a utilidade do exemplo da Dinamarca. É evidente que na Dinamarca várias causas fazem com que não exista o fenómeno do ciclo recorrente de incêndios estivais como cá, sendo uma delas claramente o clima mais frio, que a pessoa em causa esqueceu. Mas também eventualmente o facto de o território não urbano estar realmente pouco povoado, sem pinheiros, eucaliptos e espécies semelhantes, obviamente, e extensamente dedicado à agricultura de planície. A comparação é inútil. Só falei nisso para acentuar que a presença de pessoas no interior de Portugal é um facto positivo. E embora em grande parte sejam elas (um pequeno número delas, locais ou visitantes) que provocam os incêndios (que noutro ordenamento territorial nunca atingiriam a dimensão que têm), a solução não está em tirar de lá ainda mais pessoas, mas sim em levar mais gente para lá (voluntários, obviamente) num quadro económico de revitalização desse interior, e pessoas preparadas para exercer atividades dissuasoras dos incêndios e não suas propagadoras.

Atribuir à humanidade a causa dos fogos não é um truísmo contraproducente?

O fogo já existia antes do ser humano existir… diria La Palisse. Mas o ser humano passou a utilizá-lo para os seus fins próprios. No nosso caso, a frequência, intensidade e efeitos dos fogos estivais são produto de uma evolução histórica: uma sociedade que passou de uma agricultura pobre, muitas vezes de subsistência apenas, para uma sociedade urbanizada e concentrada no litoral, no cruzamento de fenómenos como a política florestal dos anos 1940-50 (veja-se o clássico de Aquilino Ribeiro Quando os Lobos Uivam) e a emigração em massa dos anos 1960, seguido após 1974 e sobretudo 1986 do quase completo abandono do setor primário (a não ser pelas celuloses que pelo contrário apostaram nele, o que, aliás, redundou  numa nova causa indireta da situação ao exponenciar o recurso a extensas plantações de eucalipto – e isso mesmo se, e é um facto, os eucaliptais sob alçada das celuloses estão menos sujeitos ao fogo porque tudo o resto está em abandono ou semiabandono) e do desinteresse total das populações urbanas e das elites, incluindo governantes, pelo que se passa fora de Lisboa e do litoral, pesem as aparências emocionais em contrário dos telejornais de verão.

Ou seja: a causa do nosso problema dos fogos cíclicos estivais que duram há décadas sucessivas (esse e apenas esse, não de qualquer outro fogo) é uma determinada situação social, económica e histórica. Como nunca, até hoje, nesse período agora já de mais de meio século, a sociedade portuguesa se empenhou seriamente em alterar o embrechado que constitui essa situação, os fogos repetem-se. E continuarão a repetir-se, reproduzindo sempre o mesmo cenário, enquanto a apatia e desinteresse da sociedade (e não apenas dos governos) se mantiver.  [Agradeço a Miguel Dantas da Gama ter-me chamado a atenção para o facto de que, atualmente, os fogos não são apenas «estivais», antes tendem a deflagrar em qualquer época do ano, mesmo no inverno, em menor número, é certo, mas em número não desprezível.]

Texto de 16 de setembro de 2016 precedido de uma nota de 24 de agosto de 2017

Mosaico paisagístico

O que segue abaixo, que vai precedido desta nota de atualização, data de 16 de setembro de 2016. Mal sabia então quanto era premonitório.

Há aí uma referência a Pombal porque esse município em 2016 afirmou a vontade de intervir decididamente na «floresta» (leia-se: monocultura intensiva de pinheiro e/ou eucalipto) e invocou a imagem do «mosaico», tão estimada pela escola dos seguidores e discípulos de Caldeira Cabral, sempre até há pouco (e ainda agora) recebida pela sociedade portuguesa com orelhas moucas.

No que se refere às «zonas tampão» a que alude o Professor Cardoso Pereira, restaria saber que outras atividades podem ser essas, urgentíssimas. Numa conversa de grupo recente via email, disse eu que não era possível cobrir de cimento ou de parques industriais esses «cortes» na massa cerrada de plantações de árvores pirófilas que hoje temos, e que a construção de «aldeias» (urbanizações, na realidade) turísticas destinadas a um público com poder de compra elevado não pode desempenhar esse papel. Resta a agricultura ou atividades correlatas, incluindo a preparação de compostos fertilizantes com base em matéria orgânica «excedentária» que, dada a reconhecida carência dos solos portugueses nesse elemento, seria sempre de grande utilidade e poderia ter um papel económico nada desprezível.

É claro que isso pressupõe uma política agrícola e rural que não temos e uma reabilitação da produção para autoconsumo (não numa agricultura de subsistência à antiga, mas num complexo polivalente de multiemprego e autoemprego complementar). O problema «florestal» provavelmente só pode ter uma solução agrícola, apesar da aparente contradição.

Quanto às «iniciativas locais de defesa de território» desconhecia nessa ocasião que existe já legislação que prevê a autodefesa das populações. Mas, ao que compreendi, é algo que caiu no esquecimento ou não passou da paralisia burocrática. De facto, esse tipo de intervenção só pode resultar da vontade e iniciativa dos cidadãos, embora possa ser positivo que exista um quadro jurídico que as possibilite e favoreça, sem que lhes seja tolhida a necessária espontaneidade, pois só livremente e autonomamente poderão preencher o seu papel.

[Nota de 23 de dezembro de 2023: no que se refere ao «mosaico» (termo que por vezes é utilizado superficialmente) tem hoje uma expressão coerente e promissora no Projeto Scapefire, precisamente em boa parte animado por uma arquiteta paisagista da «escola» de Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Teles, Manuela Raposa Magalhães). Quanto às iniciativas de defesa local, parece terem tido alguma implementação, entre outras pelo Programa Aldeia Segura que, no entanto, certos especialistas da matéria criticam por o considerarem mais «show-off» que outra coisa.]

24 de agosto de 2017

Fogos nas matas: o modelo «mosaico paisagístico» faz progressos

Este ano de 2016 parece ter sido o quarto pior ano das últimas quatro décadas em incêndios nas matas!

Uma notícia do Público de 14 de setembro contém esse dado: «Num país de floresta mal gerida, só 23 alunos escolheram engenharia florestal». Na verdade, a notícia, assinada pelo jornalista Abel Coentrão, relata o primeiro de uma série de debates sobre «A Floresta Portuguesa em Causa» na UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, no dia 13 de setembro.

Cita-se o especialista em Ecologia e Gestão do Fogo, José Miguel Cardoso Pereira, que sugere que o país abdique de 10 a 15 por cento da área ocupada com floresta mal gerida criando zonas tampão que, com outras atividades, possam quebrar as manchas de ocupação contínua. «Não vamos lá com faixas de contenção de 100 ou 150 metros».

Além de outras coisas de interesse, vem esta, que corrobora Cardoso Pereira: «O docente da UTAD Paulo Fernandes avisara, logo na primeira intervenção do dia, que o que mudou no país não foi a estrutura fundiária, mas a atividade económica desenvolvida nas florestas portuguesas e no interior, em geral, e que, em parte, garantia um mosaico paisagístico que travava, na década de 1950, os grandes incêndios.» [Nota de 23 de dezembro de 2023: o mesmo perito não parece atualmente dar crédito à ideia de que o mosaico paisagístico possa ser um elemento chave da solução, ao contrário daqueles que lançaram o Projeto Scapefire.]

Além da câmara de Pombal, outras vêm aparecendo a usar a mesma terminologia. Começa a compreender-se que o fogo foi longe demais porque o abandono foi longe demais, e a reclamar-se gente e atividade no interior. Há anos esteve por cá uma equipa de peritos noruegueses que disse a mesma coisa que a escola paisagística portuguesa dizia desde sempre, o célebre «mosaico», mas nem por ser profeta de outra terra alguém parece ter-lhe ligado importância. Ou então a semente ficou a germinar algures.

Há que aproveitar o desastre do verão de 2016 para não largar esta pista e fazê-la atuante nos cidadãos. Convidem-se os que não se resignam ao desastre permanente a constituir nas suas terras «iniciativas locais de defesa do território».

16 de setembro de 2016

Nota de 24 de agosto de 2017

Reproduzi mais acima um escrito de há quatro anos [2013]. Infelizmente a tragédia real deste verão de 2017 viria dar-me razão em muitos destes pontos, que eu dispensaria bem se esses quatro anos tivessem sido passados em ações que realmente a pudessem ter evitado, e que defendi na ocasião.

Algumas coisas estão influenciadas pelo contexto da discussão em que o escrito se situa. O que digo sobre o sobreiro obviamente não invalida que as caraterísticas de proteção perante o fogo que esta árvore terá desenvolvido na sua história evolutiva não sejam importantes ainda hoje. Certamente são, e por isso o sobreiro é uma boa alternativa ao atual absolutismo do dueto pinheiro-eucalipto. O que sobretudo quis frisar então é que o regime de fogos que apelido de inferno cíclico (expressão que poderá ter parecido exagerada a alguns mas que hoje, para desgraça nossa, se justificou inteiramente aos olhos de todos) é uma «novidade histórica» das décadas recentes e tem que ser compreendido nesse contexto histórico. Quanto à geografia, idem: não é no matorral mediterrâneo nem no Oeste ou nas pradarias americanas que temos que encontrar equivalentes: gostemos ou não, tudo o evidencia, o que se passa em Portugal nesse domínio não se passa em mais lugar nenhum do mundo. [Nota de dezembro de 2023: os fogos florestais recorrentes na Califórnia e, sobretudo, os mais recentes em lugares antes impensáveis como a Suécia ou a Sibéria, estão fortemente relacionados com o agravamento do aquecimento global, fator que em Portugal também está obviamente presente mas onde atuam numerosos outros fatores; o caráter único do caso português continua a ser uma realidade].

No fundo, nesse escrito reagi contra a ideia de «normalidade» do regime de fogos que temos, que alguns defendiam então (e se calhar ainda defendem).

E defendi o inconformismo em vez da resignação. Por essa altura, a associação Campo Aberto, a que pertenço, em cooperação com a Quinta do Lobo Branco (Penafiel), estava já a preparar um pequeno encontro sobre o tema que viria a realizar-se em 22 de outubro de 2016 na referida quinta, e que teve e ainda tem alguns seguimentos (sobretudo, a Aliança pela Floresta Autóctone).

Restaria dizer que, em reflexão conjunta com algumas pessoas que partilham estas preocupações, e sobretudo com o naturalista e grande conhecedor do Parque Nacional da Peneda-Gerês (sobre o qual publicou já uma bibliografia notável), Miguel Dantas da Gama, matizaria hoje muito do pouco que escrevi no escrito acima sobre «fogos controlados». O único que me parece fazer sentido é o contrafogo, quando já há um fogo declarado e em descontrolo. Quanto ao fogo controlado como panaceia para nos livramos de «combustível» (uma metáfora; o que há são plantas arbustivas e herbáceas, não «combustível», embora sejam… combustíveis), parece-me uma «solução» preguiçosa, que foge a enfrentar o verdadeiro problema, que é o de identificar a razão de ser de uma vegetação espontânea vir a constituir um perigo e uma catástrofe. Para não falar das emissões de gases com efeito de estufa que assim se provocam, o que, no contexto das alterações climáticas, seria de evitar . Para não falar da possibilidade do que se julga poder controlar… se descontrole, dando origem a fogos incontrolados. Para não falar na erosão, na perda de biodiversidade, na fauna associada, e outras coisas mais.

 

 

 

 

 

Desenvolvimento sustentável: contributo para a sua análise crítica

Este texto foi proferido como intervenção oral num encontro do CNADS – Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável realizado no Porto em 23 de março de 2018 sob o título Conferência A Estratégia Portuguesa 2030 à luz dos objetivos de desenvolvimento sustentável. O título Desenvolvimento sustentável: contributo para a sua análise crítica, porém, foi colocado em 23 de dezembro de 2023 para inserção neste Chão. A minha intervenção (feita em circunstâncias a que aludo no n.º 1 do texto) foi recebida com silêncio e algum constrangimento, mas também com uma intervenção de rejeição combativa e sarcástica por alguém, cujo nome e entidade a que pertencia não recordo, que a fez em reação às alusões, que proferi verbalmente após a leitura do texto, relativas à apropriação e parcial deformação pelas instâncias oficiais, incluindo a ONU, dos objetivos da sustentabilidade.

1 Agradeço ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável a possibilidade de participar neste painel. E sobretudo a Nuno Sequeira (vice-presidente da Quercus e representante, no Conselho CNADS, da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente – CPADA), que indicou o meu nome. Adverti-o de que desconheço qual é o pensamento e a posição da Confederação sobre os temas aqui abrangidos e que, embora em consonância com as associações de defesa do ambiente na generalidade, não podia garantir qualquer representatividade na curta comunicação que vou fazer. Aliás, nem sequer a nível da minha própria associação, a Campo Aberto, a cuja direção presido. Para cúmulo, disse-lhe não ter qualquer ideia do que possa ser a Estratégia Portugal 2030, nem poderia ter, pois sou homem de paz e não estratego (na raiz etimológica grega) nem general (na raiz latina). Se estou aqui é porque ele me tranquilizou considerando suficiente que eu me identificasse com as preocupações gerais das Organizações Não Governamentais de Ambiente nestas matérias, ainda que em posições minoritárias e até idiossincráticas nesse âmbito. Resumindo, estou aqui na situação paradoxal de representar muita gente e de só me representar a mim próprio.

O lugar da sustentabilidade

2.

Os objetivos de desenvolvimento do milénio, num total de oito, colocavam em sétimo lugar «garantir a sustentabilidade ambiental». No contexto das Nações Unidas, podemos até compreender que condicionalismos diplomáticos e negociais tenham obrigado a empurrar este objetivo para o fim da lista. No nosso contexto, que não é esse, em que a exigência de verdade e lucidez deve predominar, tal objetivo não pode deixar de ser o primeiro — pois ele é a condição sine qua non para que os restantes se possam cumprir. Foi-nos indicado que, na abordagem desses objetivos, se destacariam aqui três aspetos: indústria e economia circular; conhecimento do mar (biologia marinha) e biodiversidade nos oceanos; e alterações climáticas. [Nota de 28-12-2023: entretanto parece que, sem me ter dado conta, a hierarquia dos objetivos teria mudado a favor do objetivo ambiental.]

Indústria e sustentabilidade

3.

Quanto à indústria. Não é novidade para ninguém que, embora antes disso tivesse havido disrupções ecológicas, só com a revolução industrial surgiu a questão ambiental no sentido moderno. Ela tem assim, grosso modo, pouco mais de 200 anos e foi-se agravando a ritmo exponencial até se tornar na crise global generalizada em que nos encontramos mergulhados. Isso explica por que razão, ao surgir com o ímpeto de todos os grandes movimentos históricos, o movimento ecológico universal, no vigor dos anos 1960-1970, tenha apresentado uma crítica vasta, acerada, profunda e realista da civilização industrial moderna, rasgando o manto diáfano da fantasia que era a sua imagem predominante para destapar a nudez crua da verdade, glosando o célebre dito queirosiano. E decerto essa crítica incidia de igual modo sobre a economia tal como se apresentava, com a curiosa particularidade de abranger tanto o modelo ocidental dito capitalista como o modelo soviético dito socialista. Recusava assim deixar-se aprisionar no falso dilema da época, propondo a necessidade e a urgência de uma alternativa, a não confundir com qualquer terceira via assética e inodora.

Sustentabilidade forte e sustentabilidade fraca

4.

O conceito de sustentabilidade emerge desse entorno crítico. Ao ser adotado pelas instâncias oficiais (Nações Unidas, Estados, governos), foi-se pouco a pouco esbotenando, perdendo o gume, tornando-se até certo ponto pau para toda a colher, sendo usado a torto e a direito nos mais díspares contextos, e até exibido por atores económicos, sociais e políticos para justificar intervenções que vão ao arrepio de qualquer real sustentabilidade. Apesar disso, o conceito continua a ter alguma utilidade, desde que utilizado na sua aceção «forte» e cuidadosamente destrinçado das suas contrafações. No sentido forte, a sustentabilidade (que remete para a perenidade dos recursos, dos ecossistemas, dos processos naturais) não é um elemento equilátero da célebre tríade (sustentabilidade ambiental, económica, social), mas, antes, o elemento ambiental é a raiz de onde promanam uma economia e uma sociedade a construir, que terão que ser muito diferentes da atual economia de rapina e pilhagem, economia de guerra e de morte, e sociedade espartilhada entre a mais lancinante miséria (vejam-se os dramas da fome e dos refugiados) e a mais frívola espetacularidade.

5.

Não quer isso dizer que não haja tendências económicas parcelares positivas, e empresas que procuram honestamente alguma forma de sustentabilidade coerente. No entanto, estamos ainda longe de uma indústria e de uma economia, tal como existem, que tenham deixado de ser a causa principal da crise ambiental global. Aqui há também que não confundir as intenções (ora piedosas ora hipócritas) e a realidade. No nosso próprio país, temos assistido a fantasiosas intervenções supostamente respeitadoras do ambiente e da natureza que de facto constituem enormes agressões e destruições, em grande parte irrecuperáveis. A cada um pode ocorrer facilmente um ou dois exemplos eloquentes, que me dispenso de especificar.

Circularidade e poluição de rios

6.

Na vertente positiva, a economia circular e o desperdício zero ou mesmo o lixo zero são excelentes coisas, e há meritórias experiências, tentativas e mesmo realizações nesse domínio. Mas estamos ainda longe de atingir alguns marcos fundamentais. O recente exemplo das descargas no rio Tejo (fenómeno aliás frequente um pouco por toda a nossa rede hidrográfica) mostra bem a vulnerabilidade reinante. E é até surpreendente que ainda se encarem com naturalidade, num domínio como a qualidade das águas no qual a circularidade deveria ser estrita, que se possam continuar a fazer dos rios destino de tais descargas, com o pressuposto — que a experiência mostra ser falso — segundo o qual o tratamento das águas residuais de per si as torna inócuas e prontas a voltar a servir como se entretanto nada lhes tivesse acontecido.

Oceanos e sustentabilidade

7.

A situação dos oceanos é um exemplo de como continuamos longe, em terra, de uma civilização sustentável. Quanto a Portugal, a moda e o alvoroço em torno da nossa extensa costa e águas territoriais, com aspetos inegavelmente positivos, esconde sobretudo a avidez de generalizar em ambiente marinho os métodos predatórios que predominam na atividade industrial terrestre. Fazer dos fundos marinhos um eldorado de exploração mineira é apenas o aspeto mais tenebroso dessas tendências. Claro que, nesse contexto, a biodiversidade marinha será a primeira vítima, a juntar à situação já existente nas águas superficiais e intermédias, e que colocou os recursos pesqueiros na vulnerável situação em que se encontram.

Alterações climáticas

8.

Quanto às alterações climáticas, pouco se pode dizer: o que a mão direita afirma, a esquerda nega. Afirmam-se objetivos como os do Acordo de Paris. Na realidade, continua-se a subsidiar pesadamente os combustíveis fósseis, a incentivar a exploração petrolífera, a admitir mesmo, e mesmo no nosso exíguo e maltratado território, a forma mais violenta de exploração de recursos, a fraturação hidráulica, e sua contraparte, a mineração a céu aberto com a devastação de grandes extensões do solo e do coberto vegetal. [Nota de dezembro de 2023: neste ponto haveria que distinguir, na medida em que o forte movimento de contestação à exploração de petróleo cerca da costa algarvia, ou às intenções de fracking, no que se refere ao nosso país, parece ter travado os intuitos iniciais agora chamados extrativistas, embora nada garanta que os poderes  públicos tenham desistido dessa exploração; quanto à mineração a céu aberto, começava então a perceber-se o que estava em preparação no que toca à vasta proliferação de projetos de extração de lítio e terras raras, proliferação que foi acompanhada em crescendo por um movimento de contestação e autodefesa das populações do interior, e cujo desenlace ainda se não revelou.]

9.

Cabe aqui, no âmbito da questão climática, recuperar brevemente o tema da indústria. Enquanto a base energética da indústria for aquela que hoje ainda impera, toda a sustentabilidade e circularidade serão largamente ilusórias. Não é possível desenvolvimento sustentável quando a sua base energética é insustentável — e devastadora.

Superação do statu quo

10.

Para terminar, evoco algumas possíveis pistas e sugestões para a superação do statu quo

– ir além da ideia de sustentabilidade, integrando-a no entanto no que ela possa ter de melhor; a sustentabilidade deve desembocar, a nível local e a nível mundial, na regeneração dos ecossistemas próximos e planetários; é esta a proposta do urbanista e ambientalista inglês Herbert Girardet, no seu livro Criar Cidades Regeneradoras (que sintomaticamente sucedeu ao precedente Criar Cidades Sustentáveis)

– colocar como farol da ação a Ética da Terra de Aldo Leopold, no seu célebre A Sand County Almanac, editado em português com o título Pensar Como Uma Montanha;

– revisitar o pensamento de Ivan Illich, uma estimulante crítica da sociedade industrial moderna, incluindo nos seus aspetos tecnológicos, económicos, educacionais, médicos e energéticos, de que o seu pequeno livro Para Uma História das Necessidades oferece uma síntese elucidativa;

– ousar pôr em causa o próprio conceito vulgar de desenvolvimento como o faz o biólogo e escritor luso-moçambicano Mia Couto no seu texto «Melhorar muito mal» (ver Ganhar a vida objetivo 7 garantir a sustentabilidade ambiental, editado em 2009 pelo IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento);

– meditar as cinco ideias e interrogações para uma mudança, do filósofo norueguês Arne Naess incluídas na mesma publicação do IPAD: 1 – o ecólogo de terreno adquire um respeito profundo, mesmo veneração, pelos diferentes processos e formas de vida; 2 – o  PIB – Produto Interno Bruto favorece os desejos não as necessidades, sem lugar para a distinção entre lixo e luxo; 3 – mais do que uma ciência, a economia torna-se uma espécie de religião do crescimento e do desenvolvimento; 4 – poderão os habitantes dos países pobres viver da mesma maneira que os países ricos? 5 – não será o excesso de uma população com elevados padrões de consumo que põe a Terra em perigo? Concluímos com uma síntese interpretativa do seu pensamento: só identificando-nos com a realidade total, com as comunidades humanas e não humanas, poderá a humanidade deixar de ser uma força de agressão à Terra, à Realidade – e, no mesmo lance, encontrar soluções aos problemas que a atormentam: alterações climáticas, poluição, pobreza, fome, guerra.

 

 

Bem comum/bens comuns no movimento ecológico universal

Na longa história da humanidade é percetível uma tensão, variável conforme a época e os povos, entre a dimensão comunitária e a dimensão individual. Todos os povos, no entanto, se constituíram com base em estruturas fortemente comunitárias, desde a família à tribo, à estirpe, linhagem, à aldeia e, até recentemente, ao que podíamos chamar, no contexto europeu, a civilização paroquial com base nas comunidades territoriais locais.

Vemos que a essa linha de integração se vai opondo igualmente uma linha de emancipação do indivíduo face à comunidade, a qual irá culminar no individualismo liberal dos séculos XVIII e XIX e que teve na Revolução Francesa a sua maior tradução histórica.

Bem próprio da cidade ou sociedade

A criação da política como arte e metodologia de governar a cidade remonta à Grécia antiga, em cujo seio se elaboraram também as primeiras teorizações da pólis e da política, com Platão e Aristóteles. Nelas se considerava a existência de um bem próprio da cidade, um bem comum, diferente do simples somatório de bens individuais. Se a economia de então na pólis não é já a economia quase inteiramente comunitária de períodos anteriores (e da qual alguns traços se mantiveram praticamente até hoje, como acontecia ainda há pouco nas nossas aldeias comunitárias transmontanas, agora ameaçadas de uma extinção muito próxima devido ao apagamento demográfico arrastado pela emigração e, nota de dezembro de 2013, pela submersão de aldeias sacrificadas à construção de barragens), a economia da cidade grega reconheceu amplamente que o bem comum da pólis assenta em vários «bens comuns» mais específicos que lhe servem de fundamento.

Esta perspetiva da antiguidade será em parte retomada na Europa medieval, por exemplo em São Tomás de Aquino, que coloca mesmo o conceito de «bem comum» no centro do pensamento social cristão. De tal forma que, no século XIX, quando o florescer do liberalismo e do individualismo, que acompanharam o surto do capitalismo industrial, começaram a revelar temíveis efeitos secundários manifestados na miséria operária, na condição infantil e feminina, foi nesse conceito de «bem comum» que o pensamento cristão assentou o seu ressurgimento. Recusando ao mesmo tempo a perspetiva liberal da apropriação privada sem limites e a perspetiva coletiva que tinha surgido entretanto em contraponto, a chamada «doutrina social cristã» vinha relembrar que a finalidade da economia residia na felicidade de todos, e não apenas na de indivíduos ou na de uma classe.

Ditaduras, democracias e privatização dos bens comuns

No século XX, assistimos à subida em flecha da tensão «comum/individual». De um lado as ditaduras do Estado, de tipo estalinista ou fascista, do outro o extremar das tendências individualistas e de apropriação privada, e a vitória quase completa destas últimas na derradeira década do século. Mesmo bens que a economia liberal clássica chegou a considerar como bens gratuitos, e por tal comuns, como é o caso da água, estão hoje em vias de privatização acelerada, ao impor-se a sua instrumentalização para a produção de lucros e a remuneração de acionistas e perdendo-se de vista a sua função primacial de bem coletivo vital.

Na segunda metade do século findo dá-se ainda, sobretudo a partir do final dos anos 1960, uma tomada de consciência cada vez mais generalizada de como o tipo de civilização saído das sucessivas revoluções industriais estava a destruir ou a comprometer os próprios fundamentos da vida e, portanto, da própria existência humana: poluição química e nuclear, chuvas ácidas, desflorestação, contaminação do ar, dos solos e das águas, extinção de espécies animais e vegetais, passam a ser notícia frequente. Já não se trata agora de uma nação ou sociedade específica: é o bem comum da humanidade que se encontra ameaçado e que surge como problemático.

A defesa do ambiente redescobre a dimensão comum do destino humano

Mas se as correntes de opinião ambientalistas ou ecológicas redescobrem a dimensão comum do destino humano, e por vezes mesmo o caráter precioso daquilo a que certas tradições religiosas chamam «a criação», outras tendências sociais e económicas reforçam entretanto a tendência para reduzir todos os bens comuns a bens privados, cuja função prioritária consiste em gerar lucros para apropriação individual. De todos os elementos cósmicos da «criação», apenas o ar parece ainda escapar, embora já não totalmente, a essa redução a meras coisas económicas. O mais sintomático, porém, é a invasão por essa tendência do próprio domínio da vida e da propagação da vida. A «apropriação do vivo» revela a sua face genuína em fenómenos como as patentes sobre o vivo e nos alimentos geneticamente modificados, por exemplo. Estamos no limiar da completa destruição do conceito de «bem comum» e da supremacia quase total da apropriação privada sobre práticas milenares até há pouco ainda símbolos da própria dignidade da vida, como o ato de semear.

[Nota: revisto em 23 de dezembro de 2023 – texto de que não guardo datação nem registo de destino, se o teve. No final, previa exemplificar com casos como o «arroz dourado» e o de agricultores perseguidos judicialmente em litígios relacionados com os OGM – organismos geneticamente modificados, ou transgénicos na alimentação, o que nunca cheguei a fazer. Parece-me em geral que este artigo mantém  interesse no quadro de uma reflexão sobre a interface ambiental/ecológica/económica. Posso arriscar como datação o ano de 2028.]

Alboi ou a ruína da alma das cidades

Por diversos motivos, desloco-me por vezes a Aveiro, vindo do Porto.

Há tempos, li uma reportagem no jornal Público sobre o bairro do Alboi. Julgava não conhecer o local mas pela descrição feita depreendi que já tinha andado por lá perto, em deambulações a pé, meu modo preferido de me deslocar quando possível.

Falava-se da revolta dos moradores desse local perante um projeto de «requalificação». Eis uma palavra que me suscita as maiores reticências, de tal modo tem sido utilizada, desde há 15 anos sobretudo [final dos anos 1990], para justificar por vezes intervenções desnecessárias e caras, abates indiscriminados de árvores, destruição de elementos urbanos valiosos e sua substituição por outros duvidosos, descaraterização de traços identitários da paisagem urbana.

Teriam os moradores razão na sua revolta? Se fosse algo do género, certamente eu estaria de acordo com eles. O enquadramento da intervenção que motivava o seu protesto num projeto designado de «sustentabilidade» foi outra coisa que me alertou. A verdadeira «sustentabilidade» (ambiental, ecológica, social, económica, financeira) não só merece todo o apoio como é uma necessidade imperiosa.

Mas tal como com a palavra «requalificação», apercebi-me desde há uns anos que o termo é hoje utilizado com frequência para designar o exato oposto. É a famosa «novilíngua» (Georges Orwell) em que os termos são aplicados de modo a, passando por verdadeiros, mentir e falsear, neste caso fazendo aparentemente passar por obra meritória o que seria a sua exata negação.

Fiquei curioso. Quando fosse a Aveiro, iria querer saber onde é o Alboi e tentar perceber as razões dos moradores. Deambulava vindo da Universidade e ladeava um quarteirão por onde já várias vezes antes tinha passado, quando, quase inadvertidamente, reparei que uma janela ostentava um humilde cartaz impresso a preto onde sobressaía a palavra «Alboi». Entrei no bairro (que afinal conhecia mas apenas na periferia) e logo a seguir no jardim interior, ponto central e o mais afetado pela intervenção prevista e a que se opõem muitos dos moradores.

Em Aveiro, como na generalidade do país, há alguns bairros de construção «moderna» confrangedora onde uma real requalificação faria algum ou mesmo muito sentido. Mas entrar naquele bairro, modesto, gracioso mesmo sem possuir nenhuma obra «grandiosa», naquele jardim simples, sem pretensões, mas correto, agradável, acolhedor, é entrar numa dimensão de paz, de tranquilidade, de silêncio!, de oásis (apesar de Aveiro ser uma cidade de dimensão e trepidação suportáveis), que transporta o morador ou o visitante ocasional para outra dimensão.

De imediato era percetível que um espaço daqueles, a manter e a preservar com eventuais melhoramentos de pormenor muito cuidadosos, deveria no mais ser intocável. Numa era de degradação contínua da qualidade de vida em meio urbano, aquela joia ali quedada quase por milagre deveria merecer o espanto e o respeito de quem quer que sinta verdadeiramente o que é a alma de uma cidade ou de um quarteirão urbano.

Interroguei-me: como é que autarcas, técnicos, projetistas, urbanistas, podem conceber uma intervenção como a prevista sem «temor e tremor», sem um pouco ao menos de vergonha? Por mais que haja quem não queira ver que existem tendências de época (como em todas as épocas, hoje um grau exponencialmente acima talvez) que representam uma ruína do pensamento, é preciso que haja quem afirme e aponte essa ruína (que amigos sugeriram ser também da «alma») para que os seus autores não possam dentro de duas décadas (quando se oficializam os arrependimentos…) dizer «que não sabiam». Felizmente, embora de maneira mais singela, é isso que exprime a revolta dos moradores do Alboi que colaram cartazes nas janelas das suas casas liliputianas mas singelamente atraentes a dizer, embora por outras palavras, que se recusam a ser triturados pela pretensa «modernidade», mesmo «sustentável». Quem estiver ainda a tempo e puder impedir um disparate desses, que não fique de braços cruzados.
In Diário de Aveiro, 24-01-2011

Nota em 27 de dezembro de 2023: afinal a hora do arrependimento ainda não chegou. As pseudo-requalificações, quase sempre verdadeiras destruições e razias embora a pretexto de «fazer obra», a gabarolice acéfala do pretenso culto da «modernidade», continuou a destruir ou desfigurar ou descaraterizar ou esconder numerosos jardins, praças, bairros, edifícios isolados, recantos. De pouco adiantaram trenos como o meu e numerosos outros. E não foi apenas em Aveiro, longe disso. De lés a rés de Portugal os exemplos são incontáveis. Nada parece deter o tsunami do mau gosto, da insensibilidade, da incultura (apoiada ou tolerada por muitos representantes oficiais da cultura), do desprezo pelo património. Nem o protesto de moradores. Perante o silêncio ou cumplicidade de muitos outros. Mas, sim, até esse tsunami há de passar e haverá quem nas gerações seguintes pasmará perante a impunidade que permitiu casos como estes.

CHÃO: A QUE VEM ESTE BLOCO-DE-NOTAS?

Aos 78 anos, já perto dos 79, inicio este diário, há muito pensado e sempre adiado. Nele comunico reflexões e ideias de uma faceta da minha vida apenas surgida em 1970 (aos 25 anos: nasci em 1945) mas que ficou para durar e me absorveu quase inteiramente – a cidadania no domínio do movimento ecológico universal.  Talvez em prejuízo de outras a que não pude dedicar-me quanto gostaria. Para dialogar comigo sobre o que aqui for escrevendo: enviar perguntas, contributos ou observações para jcdcm@sapo.pt Tentarei responder. 

José Carlos Costa Marques

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